Postado por Daniel Morais em 31 de maio de 2018
Por Mozart Tanajura Júnior
O Papa São João Paulo II inicia sua Carta encíclica ecclesia de eucharistia sobre a eucaristia na sua relação com a igreja a partir da seguinte afirmação: “A Igreja vive da Eucaristia”. Ainda na mesma encíclica afirma que “esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja”.
Há séculos, a Igreja Católica celebra o Dia santo de Corpus Christi, cumprindo não somente um preceito, mas uma vivência existencial do grandioso mistério da presença real do Cristo no pão e vinho consagrados pelas mãos sacerdotais em corpo e sangue do Senhor, tornando-se presença real. Na hóstia consagrada temos o Cristo por inteiro que se doa à humanidade por um projeto de vida e salvação que abraça a todos, independente de crenças ou posicionamentos ideológicos. A salvação atinge a todos indistintamente, pois não é mérito nosso, é pura graça divina! Por gratuidade do amor divino fomos salvos! Mas é preciso percorrermos este caminho salvífico. O itinerário se faz a partir da consciência nossa de pecadores que somos e necessitados do auxílio divino, por isso as celebrações são importantes. A cada momento celebrado mais convicção devemos ter de que precisamos melhorar o nosso modo de ser e conviver com o próximo. Deus, a todo instante, nos interpela e convida a sermos pessoas convertidas totalmente ao seu amor. A liturgia que celebramos nas missas não esgota a vivência do mistério. Pelo contrário, é o início ou a motivação para concretizá-la em nosso cotidiano de modo geral, seja no ambiente familiar ou profissional, ou até mesmo de lazer.
O Dia de Corpus Christi deve sempre nos levar a um questionamento: Onde está o corpo de Cristo? Ao contemplá-lo na hóstia consagrada, devo imediatamente lembrar-me que o Corpo de Cristo se encontra em mais completo abandono nas situações degradantes da humanidade, fruto de um egoísmo e falta de partilha desmedidos. O Corpo de Cristo se encontra desfigurado também nos rostos sofridos dos que passam fome, das crianças abandonadas, dos escravizados pelas drogas, na face explorada das prostitutas e prostitutos, nos massacrados pelo sistema injusto em que o ter é mais valorizado que o ser, enfim em todos os rostos maltratados, que, vítimas de uma realidade de grandes injustiças sociais, perdem a sua própria dignidade de humanos, sendo tratados como se assim não os fossem. Cristo sofre neles! É nesta linha de raciocínio que São João Crisóstomo já nos alertava: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu Corpo’, […] também afirmou: ‘Vistes-Me com fome e não me destes de comer’, e ainda: ‘Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes’”(S. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus).
Com efeito, o Corpo de Cristo é um mistério que envolve toda a humanidade. Não há como dissociar a fé da vida! Se assim o fizermos correremos o sério risco de não ter compreendido nada do Evangelho que se celebra há vários séculos. Torna-se emblemática a admoestação do Apóstolo Paulo que, nas palavras de São João Paulo II, “qualifica como ‘indigna’ duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34)”.
O binômio fé e vida se sustenta numa esfera em que a dimensão litúrgica não se limita como foi dito apenas ao ato celebrativo, mas se torna dinamizada em todos as nossas ações humanas. Causa-nos espanto a perspectiva cada vez mais exploradora do sistema capitalista neoliberal que, em nome da lucratividade, priva os trabalhadores do direito ao descanso e à celebração de um dia santificado. A Doutrina Social da Igreja Católica nos ajuda a pensar que a pessoa humana deve estar acima da ambição mercadológica: “As autoridades públicas têm o dever de vigiar para que não se subtraia aos cidadãos, por motivos de produtividade econômica, o tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os empregadores têm uma obrigação análoga em relação aos seus empregados. Os cristãos devem envidar esforços, no respeito à liberdade religiosa e ao bem comum de todos, para que as leis reconheçam os domingos e os dias de festa da Igreja como feriados” (Compêndio de Doutrina Social da Igreja Católica, 286).
Portanto, o dia santificado do Corpus Christi deve nos levar a uma profunda reflexão em torno da presença real do Cristo no pão e vinho consagrados, mas também no pão partilhado com o próximo, revelando a verdadeira face de uma dimensão religiosa que deve lutar de forma libertadora contra as amarras da ambição e do egoísmo humano tão latentes em nossa pós-modernidade, patrocinada pelo sistema solipsista do neocapitalismo.